Os Enclaves
portugueses na Índia
(Goa – Damão – Diu)
UNIÃO
INDIANA
(mais
toda a Cachemira)
Operação
Vijay - 18 a 19/12/1961
Em
18/19 de Dezembro de 1961 tropas indianas invadiram Goa, Damão e Diu.
Portugal viria a reconhecer a soberania indiana em 1974, com Mário Soares.
Desde 1987 que Goa é um estado na União Indiana, tendo sido de 1961 até 1987
um "Union Territory". Para saber mais sobre a história milenar de
Goa até os nossos dias veja.
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Cronologia dos Acontecimentos
Do livro "Cronologia Geral da Índia
Portuguesa - 1498-1962" de Carlos Alexandre de Morais, Referência/Editorial Estampa
1947
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A 15 de
Agosto, a Grã-Bretanha concede a independência à União Indiana e ao
Paquistão.
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1948
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A 12 de
Agosto, os governos de Portugal e da Índia decidem trocar representantes
diplomáticos ao nível de legação.
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São
perseguidos os goeses que, residindo na Índia, não reneguem a nacionalidade
portuguesa. Nehru afirma: "Goa é parte da União Indiana e a esta deve
regressar".
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A 27 de
Fevereiro, o Governo da União Indiana solicita ao Governo português que se
iniciem negociações quanto ao futuro das colónias portuguesas na Índia.
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A 15 de
Julho, o Governo português responde declarando que a questão apresentada
"não se pode discutir e muito menos aceitar para ela a solução que se
lhe propõe".
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1951
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Infiltram-se
no território de Goa elementos da União Indiana.
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1953
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Salazar
afirma que se Nehru recorrer à força negará ao mundo a sua política
pacifista.
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A 11 de
Junho, o governo indiano retira de Lisboa a sua missão diplomática,
mantendo os portugueses a sua em nova Deli.
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Nos
finais do ano, a União Indiana institui o bloqueio a Goa. Exigências de
visto paralisam a circulação de pessoas e funcionários portugueses entre
Goa, Damão e Diu e os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli.
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1954
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A 22 de
Julho, cidadãos da União Indiana, vinda daquele país, alguns armados e
enquadrados por forças regulares da Polícia e de tropas de reserva,
assaltam o enclave de Dadrá, onde morrem em combate, o subchefe da Polícia
e o guarda António Fernandes. O mesmo processo é utilizado horas depois, no
assalto ao enclave de Nagar-Aveli.
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É
expulso o cônsul da Índia em Goa e Nova Deli expulsa os funcionários
portugueses de Bombaim.
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Na noite
de 15 de Agosto um grupo de satyagrahis ocupa o Forte de Tiracol, no Norte de Goa, hasteando a bandeira indiana. Uma força policial
portuguesa retoma-o, horas depois, hasteando a bandeira nacional. Há um
morto e alguns feridos entre os indianos.
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Em
discurso proferido, em 30 de Novembro, na Assembleia Nacional, Salazar
afirma que considera Goa indefensável.
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1955
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A 8 de
Agosto, a União Indiana decide encerrar a legação portuguesa em Nova Deli.
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No
parlamento indiano Nehru afirma: "Nós não estamos dispostos a tolerar
a presença portuguesas em Goa, ainda que os goeses queiram que eles aí
estejam".
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1956
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Elementos
provenientes da União Indiana violam as fronteiras, roubam e causam mortos
e feridos entre a população e o pessoal da Polícia.
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O
embaixador Marcello Mathias defende, junto de Salazar, que o problema de
Goa seja resolvido por referendo. Salazar, em Conselho de Ministros, expõe
o assunto nesses termos mas os ministros da Defesa e dos Negócios
Estrangeiros levantam as maiores objecções. A situação mantém-se
inalterável.
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1957
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O
general Humberto Delgado, candidato à presidência da República, defende o
plebiscito para a resolução do caso do Estado da Índia.
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1958
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Em Goa,
Damão e Diu continuam, quase diariamente, as incursões de agentes indianos,
os roubos de bens e as agressões a goeses.
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A 4 de
Dezembro, chega a Goa o novo e último governador-geral da Índia Portuguesa,
general Manuel António Vassalo e Silva.
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1959
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Na Índia
Portuguesa, dos 226 cargos oficiais, 134 são desempenhados por goeses, 49
por portugueses da metrópole e 9 por descendentes de portugueses.
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1960
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Um
importante núcleo de goeses, contrário à política do Governo central mas
evidenciando repúdio pela integração na União Indiana, prepara um Projecto
de Estatuto de Autonomia Administrativa e Financeira do Estado da Índia,
que é enviado para Lisboa e rejeitado pelo chefe de estado.
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Um grupo
de destacadas figuras de Goa, sabendo que o primeiro-ministro da
Grã-Bretanha MacMillan se dispõe a servir de medianeiro no caso de Goa,
envia ao presidente da República um telegrama pedindo que sejam ouvidos os
goeses nessa mediação e reclamando plena autonomia administrativa e
financeira - pedido que o governo de Lisboa recusa.
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1961
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Khrishna
Menon, ministro indiano da Defesa, pressiona Nehru no sentido de este
ordenar o ataque a Goa. Salazar não acredita que este se concretize.
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Recrudescem
em Goa acções de que resultam mortos e feridos.
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Verifica-se
grande concentração de de meios militares indianos em redor das fronteiras
de Goa, Damão e Diu. Do facto é avisado o Conselho da Segurança das Nações
Unidas.
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Ao largo
de Damão e Diu cruzam-se navios de guerra indianos e ao largo do porto de
Mormugão paira uma poderosa esquadra. Aviões de combate indianos violam o
espaço aéreo português.
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Datados
de 14 de Dezembro, são recebidos pelo governador-geral dois telegramas do
presidente do Conselho. O primeiro refere que há que contar com o pior e
exorta as forças armadas do Estado da Índia ao sacrifício total. O segundo
confirma que no dia imediato a União Indiana desencadeará o ataque.
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Na noite
de 17 para 18 de Dezembro, a União Indiana, com um exército de cerca de 50
000 homens, dispondo de moderno material de guerra e apoiado por poderosas
forças aéreas e navais, invade e ocupa os territórios de Goa, Damão e Diu, defendidos por cerca de 3500
homens, deficientemente armados e municiados.
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A
resistência portuguesa distingue-se nas guarnições da ilha da Angediva,
Forte de Aguada, Damão, Diu e aviso Afonso
de Albuquerque.
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No dia
19, dá-se a rendição das tropas portuguesas, que ficam prisioneiras das
forças indianas durante cerca de seis meses.
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Por
solicitação de Portugal, é convocado o Conselho de Segurança das Nações
Unidas em virtude da invasão do Estado Português da Índia. O Conselho
condena a União Indiana mas a União Soviética opõe o seu veto.
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Breve descrição dos acontecimentos
Nos
dias 17/18 de Dezembro de 1961, durante a denominada Operação Vijaya, 50 000
tropas indianas apoiadas por blindados, artilharia, meios aéros (aviões de
combate Canberra) e navais (1 porta-aviões) ocuparam militarmente Goa, Damão
e Diu.
Os 3500 militares portugueses e goeses tinham ordens de
Salazar para lutar até à morte, sendo que o chefe-de-estado português
comunicou que só esperava como resultado do combate "militares
vitoriosos ou mortos".
Contudo, o Governador Vassalo e Silva apercebeu-se da situação desesperada e
perante o avanço dos indianos mandou recuar as forças e destruir todas as
pontes e meios militares pelo caminho.
Sem meios aéreos portugueses, a aviação indiana teve tarefa fácil ao destruir
a torre de telecomunicações em Bambolim e a base militar em Dabolim. Pouco
depois entravam em território de Goa, Damão e Diu as tropas da União Indiana,
que ao contrário do que se esperava ainda se depararam com resistência de
alguns militares portugueses, nomeadamente em Vasco da Gama, onde 500
militares fortemente armados obrigaram as forças indianas a combate.
Também a fragata Afonso de Albuquerque entrou em combate à
frente da barra de Mormugão, mas foi presa fácil para os modernos navios
indianos que a afundaram.
A destruição de pontes por parte dos portugueses fez também com que a
ocupação total se tenha prolongado por mais de 2 dias, porque as tropas
indianas não tinham meios para passar os rios de Mandovi (á frente de
Pangim), e Zuari (a sul de Pondá). Como tal tiveram de pernoitar à espera de
prosseguir em condições e para aceitarem a rendição das forças portuguesas em
19 de Dezembro de 1961.
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Tropas indianas marcham em Goa |
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Generais P. N.Thapar e Vassalo e Silva |
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Rendição das Tropas Portuguesas em Pangim |
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Generais-Comandantes assinando o Ato de Rendição |
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Mário Soares, MNE, assinando o restabelecimento diplomático com a União Indiana, em 31/12/1974 |
2 de
Janeiro de 2001 (Diário de Notícias):
"Só soldados vitoriosos ou
mortos"
Na
véspera da queda da Índia, Salazar pediu o sacrifício da vida aos três mil
militares portugueses. Não os queria prisioneiros
José Manuel Barroso - Arquivo DN
A 3 de Janeiro de 1962, António de Oliveira Salazar, o líder e fundador do
regime do Estado Novo, não leu o mais doloroso discurso da sua vida política.
Perante uma Assembleia Nacional aturdida pela queda da Índia Portuguesa, um
Salazar afónico "com as emoções das últimas semanas" teve de recorrer
ao presidente do parlamento, Mário de Figueiredo, para a leitura de um texto de
reconhecimento e de justificação de uma derrota, que iniciava o fim do Império
Colonial Português, sem sequer poder invocar a gesta patriótica dos milhares de
soldados mortos.
A 14 de Dezembro de 1961, três dias antes da invasão e ocupação do Estado
Português da Índia (Goa, Damão e Diu) pelas forças da União Indiana, Salazar
pedira aos soldados e marinheiros portugueses nos territórios um último
sacrifício, o da vida.
Mal armados e em número reduzido (cerca de 4 mil efectivos), perante as forças
indianas invasoras (cerca de 50 mil militares do Exército, Marinha e Força
Aérea), resistir significava uma cruel e inútil auto-imolação para os efectivos
portugueses. Nos dois dias da invasão, resistiram o que puderam, morrendo 26
militares. Mas o contingente português acabou por se render, a 19 de Dezembro,
tendo o governador, general Vassalo e Silva, ordenado a "suspensão do
fogo" às suas tropas.
Mais de 3 mil militares portugueses foram feitos prisioneiros pelo Exército
indiano (entre os quais se encontrava o general Vassalo e Silva), os
prisioneiros que Salazar não queria. Por isso puniu e perseguiu alguns dos
oficiais em serviço na Índia - o que abriu dolorosa ferida nas Forças Armadas
portuguesas e foi uma das raízes do derrube do regime de Salazar, doze anos
depois da queda de Goa, Damão e Diu.
Na mensagem que enviou, a 14 de Dezembro de 1961, ao governador e
comandante-chefe português do Estado da Índia, Vassalo e Silva, o chefe do
governo de Lisboa reconhecia a "impossibilidade de assegurar a defesa
plenamente eficaz" dos territórios, mas pedia ao general que organizasse
essa defesa "pela forma que melhor possa fazer realçar o valor dos
portugueses, segundo velha tradição na Índia". E ainda: "É horrível
pensar que possa significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse
sacrifício como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e
prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação".
Sendo "impossível" a defesa "eficaz" dos territórios, dado
a Índia poder multiplicar "por factor arbitrário" as suas forças de
ataque - conforme Salazar reconhecia na sua mensagem - a ordem dada ao general
Vassalo e Silva revelava-se inequívoca. "Não prevejo possibilidade de
tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois
sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos".
O telegrama de Salazar a Vassalo e Silva, ao reconhecer a "impossibilidade
de assegurar a defesa", exigia mártires, que pudessem ser exibidos interna
e externamente, em nome de uma política de intransigência que tinha como
horizonte o futuro dos territórios ultramarinos de África - onde a guerra
começara já (em Angola) nesse ano de 1961.
Por isso, na sua mensagem à Assembleia Nacional, a 3 de Janeiro de 1962,
Salazar invoca o princípio da soberania nacional, tal como o definia o
ordenamento jurídico da Constituição do Estado Novo. "Nós não podemos
negociar, sem nos negarmos e sem trairmos os nossos, a cedência de territórios
nacionais, nem a transferência das populações que os habitam para soberanias
estranhas", disse Salazar. Era o fundamento de uma política de
resistência.
A "questão da Índia" começara uma dezena de anos antes, com a
independência da União Indiana. Desde 1948 que, directa ou indirectamente, as
autoridades do novo país - a "jóia da Corôa" do império britânico -
reclamavam a integração na grande Índia dos territórios que Portugal detinha
sob sua administração, desde há quase cinco séculos (ler cronologia). Em 1950,
o governo indiano solicita, formalmente, a Lisboa, a abertura de negociações,
quanto ao futuro dos territórios portugueses. Portugal recusou sempre qualquer
diálogo com a União Indiana.
Em 1953, o primeiro-ministro indiano, Nehru, afirma que, face à recusa
portuguesa, o seu país não vê outra solução que não seja "a tranferência
directa que assegure a fusão daqueles territórios com a União Indiana".
No seio do regime português discute-se a possibilidade de outras soluções, para
preservar a autonomia dos territórios. Mas Salazar, reconhecendo embora que Goa
(o maior dos três territórios) é, ele próprio, militarmente indefensável,
entende que um plebiscito ou mesmo a independência não constituem soluções, uma
vez que Nehru declara já as não aceitar.
A ideia do plebiscito atraía, então, um sector importante do regime, como forma
de demonstração, por parte de Portugal, do respeito pela vontade das populações
da Índia Portuguesa e como argumento perante a comunidade internacional. Mas o
precedente que abria, para o Ultramar, solidificou a intransigência de Oliveira
Salazar - e levou à humilhação na Índia.
Cronologia
SÉC. XV. O objectivo estratégico de Portugal, neste
período, era a descoberta do caminho marítimo para a Índia (1498, por Vasco da
Gama). O historiador britânico Arnold Toynbee divide a história do mundo em
duas fases, a do homem pré-gâmico e a do homem pós-gâmico. "A forma como
as religiões cristã, indostânica e muçulmana se desenvolveram, lado a lado, em
Goa, durante séculos e em mútuo respeito, constitui uma das características da
presença portuguesa no Oriente". O controlo naval do Índico é uma meta.
SÉC. XVI. D.João III define o seu conceito estratégico de
"abandonar o norte de África, manter o possível na Índia e fazer o esforço
no Brasil".
SÉC. XIX. Depois da independência do Brasil (1822), o
esforço estratégico de Portugal no Ultramar dirige-se para África.
1947. A Grã-Bretanha concede a independência à Índia.
Nesse ano, o primeiro-ministro indiano, Nehru, afirma que o seu país dará todo
o apoio ao povo de Goa para conseguir a libertação.
1948. O goês António Bruto da Costa escreve a Salazar condenando o Acto
Colonial e defendendo uma verdadeira autonomia administrativa do Estado
Português da Índia.
1949. O governo indiano exige à Santa Sé a extinção do
Padroado do Oriente, cessando o privilégio concedido a Portugal de designação
de bispos para dioceses indianas _ reduzindo a Goa a arquidiocese de Goa.
1950. O governo indiano propõe ao governo português
negociações para definição do futuro dos territórios portugueses na Índia. Lisboa
rejeita a proposta. Negoceia com a Santa Sé a redelimitação da arquidiocese de
Goa.
1954. A 30 de Novembro, em discurso na Assembleia
Nacional, Salazar reconhece que Goa é indefensável militarmente.
1961. Redução dos efectivos militares portugueses na
Índia (1960). A União Indiana ocupa militarmente o Estado Português da Índia e
anexa Goa, Damão e Diu ao seu território.
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A Fortaleza de Damão |
Textos
Rui Barata
De
nada valeu o esforço dos fiéis que, naquela tarde de 16 de Dezembro de 1961,
realizaram uma procissão a pé, de Pangim ao túmulo de São Francisco Xavier, em
Velha Goa, para rogar ao santo que impedisse a iminente invasão do Estado
Português de Índia (EPI) pela União Indiana. São Francisco fez ouvidos moucos
às preces dos brâmanes católicos que dominavam a vida económica e política de
Goa no tempo do colonialismo português, e dois dias depois do procissão
religiosa as tropas indianas entraram triunfalmente no território. Findava aí,
de maneira dolorosa para o orgulho nacional, o domínio português em Goa, Damão
e Diu. E começava a derrocada imparável do império colonial português, cujo
último acto se escreve amanhã com a devolução de Macau à China. Trinta e oito
anos depois da invasão indiana - que para parte significativa do população
representou a libertação do jugo colonial - o PÚBLICO foi a Goa ver o que resta
da herança portuguesa.
Naquela madrugada de 18 de Dezembro
de 1961, dia em que completou 18 anos, Manuela Barreto Xavier adormeceu
portuguesa e acordou indiana. Mas permaneceu goesa, brâmane e católica, três
qualidades que a colocam no cada vez mais reduzido grupo de pessoas que, em Goa
e em muitos outros lugares do mundo, se sentem indianas por fora e portuguesas
por dentro. Pessoas como o magistrado Eurico Santana da Silva, juiz do Supremo
Tribunal de Bombaim e guardião de uma das mais monumentais casas
indo-portuguesas do território; ou como Fernando Jorge Colaço, advogado com
escritório em Pangim e estudioso incansável das leis e costumes portugueses. Ou
ainda como Rosa Rodrigues, da aldeia de Cunchilim, cuja maior ambição na vida é
viajar até Portugal para rezar em português no santuário de Fátima. São pessoas
como eles que, 38 anos após a integração forçada do Estado Português da Índia
(EPI) na União Indiana, mantêm viva a herança portuguesa em Goa, alimentada por
um discurso de nostalgia por um passado que não volta. Encarados muitas vezes
como um anacronismo, os "portugueses" de Goa estão a caminho de se
transformar em mais uma casta no país das castas. A casta dos que, como refere
Santana da Silva, "têm passaporte indiano e coração português".
Para encontrar uma explicação para
tanto apego à cultura e à língua portuguesas, é preciso
recuar no tempo. Recuar pelo menos até 1632, ano em que o Papa Gregório XV
decretou que os brâmanes indianos que aceitassem converter-se ao catolicismo
mantinham os privilégios da sua casta, podendo continuar a exibir publicamente
os respectivos sinais distintivos. Esta decisão veio de encontro aos interesses
dos portugueses, que desde a chegada de Vasco da Gama à Índia, em 1498,
baseavam a sua autoridade na conversão de brâmanes e chardós (as duas castas
superiores hindus), a quem era garantido o acesso a todos os cargos da
administração local.
Alguns dos recém-convertidos
mantiveram em segredo as práticas rituais da sua religião ancestral, como
depois foi comprovado pelos desvarios da Inquisição. Mas muitos converteram-se
definitivamente ao cristianismo, mantendo-se embora divididos em quatro castas.
Os brâmanes ocuparam as mais altas posições no clero, nas profissões liberais e
na administração. Os chardós, por seu turno, formaram uma aristocracia rural
que acabou recompensada pelos portugueses com títulos de nobreza, enquanto os
sudras e corumbins são, ainda hoje, maioritariamente camponeses e trabalhadores
braçais.
Eram precisamente os brâmanes e os
chardós católicos que dirigiam na prática o Estado Português da Índia (EPI)
quando a União Indiana (UI) reclamou, pela voz do primeiro-ministro Nehru, a
devolução de Goa, Damão e Diu. O Governo de António Salazar recusou estas
pretensões e lançou-se numa batalha diplomática, tendo mesmo recorrido para o
Tribunal de Justiça de Haia quando a UI anexou os enclaves de Dadrá e
Nagar-Aveli. Enquanto Salazar hesitava sobre se devia invocar a aliança com a
Inglaterra, as tropas indianas avançaram sobre Goa, Damão e Diu na madrugada de
18 de Dezembro de 1961, tendo encontrado fraca resistência. No território
estavam aquartelados apenas cerca de 3500 soldados portugueses, naturalmente
impotentes para resistir a um assalto de mais de 30 mil indianos. O velho
cruzador Afonso de Albuquerque ainda resistiu à entrada do Porto de Vasco da
Gama, mas acabou por afundar-se junto à praia de Dona Paula. O governador-geral
do EPI, general Vassalo e Silva rendeu-se a 19 de Dezembro, reconhecendo que a
defesa do território era "insustentável". Oliveira Salazar nunca lhe
perdoaria esta atitude, demitindo-o do exército dois anos depois.
Começou então um período muito
difícil para os brâmanes católicos e para os chardós. Perdem privilégios e
terras. Quintas e várzeas de arroz que faziam a riqueza das casas senhoriais
são divididas e entregues aos camponeses. "Vim a correr de Bangalore para
garantir que a casa se mantinha na posse da família", recorda num
português fluente a herdeira da família Menezes Bragança, proprietária de uma
magnífica casa em Chandor (Salcete). Conhecida como "dama de Chandor"
e descrita pelo escritor José Eduardo Agualusa como "a guardiã da memória
de Goa", Aida Bragança viu-se obrigada a abrir a casa a visitas de
turistas para preservar o espólio da família, que inclui preciosas peças de
arte-sacra, porcelanas da China e da Companhia das índias e mobiliário
indo-português em madeiras nobres e marfim.
Também os membros da administração
local enfrentam problemas. Aos magistrados, por exemplo, é dado um prazo de 24
horas para decidirem se continuam ao serviço da UI ou se abandonam os cargos.
Muitos dos que escolhem ficar atravessam a seguir um período muito difícil,
como o juiz Santana da Silva, que esteve mais de 20 anos sem uma promoção. A
maioria dos brâmanes católicos são substituídos nos cargos de decisão por
hindus. A língua
portuguesa
desaparece dos currículos escolares. A relação de forças altera-se no novo
Estado de Goa, e os cristãos, passam a estar em minoria. Os falantes de
português sentem-se ostracizados e muitos optam por emigrar.
Só em 1985, por acção de um dos
Governos presididos por Mário Soares, as relações entre Portugal e a UI entram
num clima de razoável normalidade. É aberto primeiro um consulado português em
Pangim, depois a Fundação Oriente instala-se numa magnífica casa branca no
bairro das Fontainhas. Na Universidade de Goa começa a funcionar uma
licenciatura em Língua Portuguesa e o Português regressa aos currículos do
ensino secundário. O jovem Fausto Colaço é um bom exemplo dos novos tempos. Foi
dos primeiros a completar o curso na Universidade de Goa e hoje ensina
Português em diversas escolas em redor de Margão. "Há um grande interesse
pela língua portuguesa, em especial por parte de alunos que sonham em fazer
carreira fora de Goa", reconhece.
Durante os anos em que Portugal e a
Índia estiveram de costas voltadas, quem manteve viva a cultura e a língua
portuguesas foram os brâmanes e os padres católicos. "Dentro de casa, no
seio da família, falamos português; cá fora falamos inglês, konkani, hindi ou o
que for preciso", explica Fernando Jorge Colaço. Advogado da Fundação do
Oriente, este goês formado em Lisboa prepara-se para publicar em português um
livro contando a sua versão dos acontecimento de 18 de Dezembro de 1961. O
advogado é apenas mais um da extensa lista de goeses que continuam a escrever e
a publicar em português, onde se destacam os nomes dos escritores Carmo Azevedo
e Carmo Noronha (recentemente falecido).
O Português permaneceu também vivo
nos registos notariais e até nas leis que regem as questões de família e
sucessões. O velho código de Seabra ainda está parcialmente em vigor para os
nascidos no território. Padres como Avinash Rebello, da paróquia de Santa Cruz,
continuam a ser os guardiões dos registos de nascimento e morte, e no seminário
grande de Rachol continua a língua portuguesa voltou a ser ensinada. Em Pangim,
todos os domingos, a missa é celebrada em português, para grande alegria de
pessoas como Florêncio Ribeiro, alfaiate que há 40 anos cruza as estradas de
Goa montado na sua bicicleta para costurar vestidos ocidentais nas casas
indo-portuguesas. "Nasci português e vou morrer português. É o meu
karma", diz. E sorri sem mostrar os dentes.
"O português
está 'in'"
Kamalacant
será um nome tão português quanto Santos, Silva ou Rodrigues?
À primeira vista parece que não. Mas o senhor Kamalacant, Menino de nome
próprio, jura que sim. "É um nome português e cristão sim senhor. Foi-me
dado pelo meu pai, que também era um português puro", garante na língua de
Camões, enquanto vai afinando o motor de uma motorizada Bajaj, na sua oficina
no bairro das Fontainhas, em Pangim. Ali, a dois passos da casa branca da
Fundação do Oriente, toda a gente reclama as suas raízes portuguesas. Falar
português ou apenas ter um apelido vagamente lusitano é um sinal reconhecido de
"status".
Mas não é só no labirinto das ruas
das Fontainhas que, como refere o advogado Fernando Colaço, "o português
está 'in"'. No exclusivo Hotel Forte Aguada, por exemplo, as refeições dos
hóspedes são acompanhadas pela toada dolente de um fado cantado com um sotaque
arrevezado. Ouvir cantar "Coimbra menina e moça" enquanto se come um
caldo que é verde mas não é Caldo Verde é, no mínimo, surpreendente.
Quem anda por Goa acaba sempre por
tropeçar em alguma coisa que lhe traz Portugal à memória. Seja as velhas
tabuletas em português, a traça inconfundível das casas indo-portuguesas ou uma
oração murmurada numa das centenas de igrejas e capelas brancas espalhadas pelo
território. Ao final do dia dança-se um vira estilizado no convés dos barcos
turísticos que cruzam o rio Mandovi. E pelas janelas abertas das casas de
Margão, Mapusa ou Pangim chegam até à rua os sons da RTP Internacional, a nova
"coqueluche" da televisão por cabo em Goa. Marques Mendes, Jorge
Coelho ou Carlos Carvalhas nem suspeitam do sucesso extraordinário que os seus
bonecos no Contra-Informação fazem entre os espectadores de Goa. E Nicolau
Breyner pode dormir descansado, porque a telenovela A Lenda da Garça é um
sucesso no antigo Estado Português da Índia, apesar de passar a um horário
tardio.
Outro sinal de orgulho na herança
portuguesa é a recuperação das espantosas casas indo-portuguesas espalhadas por
todas as aldeias goesas. A Fundação do Oriente deu o exemplo ao subsidiar a
recuperação de algumas casas nas Fontainhas, mas o principal trabalho está a
ser feito por particulares como Aida Bragança ou Santana da Silva, que têm
gasto fortunas para manterem de pé os palacetes de Chandor e Margão. Os
novos-ricos de Goa, com os bolsos cheios de petrodólares ganhos no Golfo
Pérsico, têm vindo a adquirir casas por todo o lado, como a casa grande cristã
de Loutolim, que hoje apresenta a fachada recuperada.
A
elite dos brâmanes católicos continua em progressiva perda de influência. Quem
manda hoje em Goa é uma burguesia hindu ligada às minas de carvão e outros
hindus de casta mais baixa que fizeram fortuna no Golfo e hoje mandam os filhos
estudar para Bombaim, e até para a América e para a Europa. São quase todos
oriundos de outras partes da Índia e continuam a chegar a Goa diariamente,
trazidos pelos novos comboios da Konkani Railway. Os menos afortunados
instalam-se em gigantescos acampamentos em redor das principais cidades e
ganham a vida como trabalhadores braçais ou vendendo bugigangas aos turistas
nas praias.
No aeroporto de Dabolim aterram
todas as semanas dúzias de aviões "charter", trazendo turistas
europeus, atraídos pelo sol das praias brancas de Goa. São quase todos ou muito
jovens ou muito velhos. Os primeiros instalam-se nas "shacks"
(pequenos hotéis e restaurantes à beira das praias) e cumprem o circuito das
"rave parties" movidas a marijuana e música "techno". Os
segundos refugiam-se nos hotéis de luxo, e só põem o nariz de fora para comprar
algumas obras de artesanato nas lojas das redondezas a preços exorbitantes. O
turismo continua a ser a galinha de ovos de ouro de Goa, e todos os dias surgem
notícias sobre a construção de novos hotéis.
No meio de tudo isto, os brâmanes
católicos agarram-se ao passado. Exaltam as suas raízes portuguesas,
refugiam-se no catolicismo e vão fazendo o que podem para manter de pé as casas
apalaçadas, com a ajuda do dinheiro enviado pelos parente que emigraram para
Portugal. O seu tempo passou. Mas eles permanecem agarrados a costumes antigos,
à espera de uma redenção que poderá nunca chegar.
Cristãos e Freedom Fighters
Os mendigos foram
os primeiros a chegar. Alguns foram trazidos em braços até aos
degraus da igreja matriz de Margão, outros vieram pelos seus próprios meios,
deslizando em tábuas de madeira assentes em rolamentos ou precariamente
equilibrados em muletas improvisadas com ramos de árvores. Depois chegaram os
vendedores. Mais perto da igreja ficaram as bancas dos doceiros
hindus, muito apreciados pelo paladar cristão, e logo a seguir instalaram-se os
trens de cozinha de inox e latão, as panelas de barro e os brinquedos de
plástico. Mais para o fundo, numa zona descampada, amontoaram-se os vendedores
de mobílias, e um jovem amestrador de cobras conseguiu até encaixar-se num
cantinho, entre uma cama de madeira trabalhada e um guarda-fatos cujo espelho
reflectia as contorções dos répteis. Com quase um dia de antecedência, os
comerciantes hindus montaram a sua feira à volta da igreja onde iriam decorrer
as celebrações católicas da Nossa Senhora da Conceição. E sem darem qualquer
sinal de impaciência por ali passaram a noite à espera dos devotos cristãos,
que chegaram em hordas na manhã seguinte.
Ser católico em Goa implica militância.
Implica uma devoção e entrega que dificilmente tem paralelo no Ocidente. A
concorrência entre religiões é muita, e os cristãos estão hoje espartilhados
pelo hinduísmo dominante e pelo islamismo crescente. A cultura goesa pode ser
sincrética e dinâmica, mas é com temor que muitos cristãos assistem ao
nascimento de templos hindus e mesquitas muçulmanas ao lado das velhas igrejas
e capelas deixadas pelos portugueses. Ao contrário do que sucedia antes da
integração na União Indiana, hoje os hindus representam mais de 60 por cento da
população, contra cerca de 30 por cento de católicos. As vagas de imigrantes de
outros pontos da Índia transformaram o tecido social de Goa e ameaçam a
identidade dos cristãos.
Neste contexto, todas as celebrações
religiosas são encarados como momentos de afirmação de uma cultura e de um modo
de vida. Às festas da Senhora da Conceição em Margão, por exemplo, acorreram
fiéis vindo de toda a Goa, numa manifestação de força e de fé. Na manhã do dia
oito de Dezembro as missas sucederam-se ininterruptamente desde as seis da
manhã, celebradas alternadamente em inglês e konkani. Na igreja matiz de Pangim
o Pai Nosso foi rezado em português.
Os brâmanes católicos, no entanto,
não parecem ter vocação evangélica. O programa dos festejos nocturnos, por
exemplo, é feito à medida para afastar hindus e outras crenças. A música é uma
mistura de xaroposas canções de amor ocidentais e modinhas portuguesas, e à
porta do recinto fechado e com entrada reservada, cartazes avisam de que será
servida unicamente comida não-vegetariana.
Esta atitude ajuda a confinar ainda
mais os brâmanes católicos num gueto, e alimenta as críticas dos chamados
"Freedom Fighters", organização cujos membros recebem do Governo
indiano uma pensão de cerca de 2.500 escudos por terem combatido o colonialismo
português. Os Freedom Fighters são também um anacronismo, mas ninguém os pode
acusar de falta de actividade.
Foi em grande parte devido aos seus protestos públicos que redundaram num falhanço em Goa as comemorações da chegada de Vasco da Gama à Índia. São eles também que regularmente escrevem nos jornais exigindo que os nomes portugueses das cidades sejam substituídos por designações em Konkani. Foram eles, por último, que denunciaram as alegadas pretensões neo-colonialistas dos portugueses no momento da abertura do consulado em Pangim, ao mesmo tempo que punham a correr o rumor de que a Fundação Oriente era um ninho de espiões. Embora a maioria dos Freedom Fighters seja afecta ao Partido do Congresso, muitos transferiram-se nos últimos anos para Barathia Janata Party (BJP), o partido nacionalista hindu moderado que hoje detém o poder na Índia. Trinta e oito anos depois da integração do Estado Português da Índia na União Indiana, a luta continua para brâmanes católicos e Freedo Fighters. Tolhida por artroses e ligeiramente esclerosada, mas continua.