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sábado, 17 de maio de 2014

ARQ. ALCINO SOUTINHO

"ALCINO SOUTINHO, O ARQUITETO DA LINGUAGEM EFUSIVA"
Com a calma e simplicidade de sempre, como se tudo fosse natural, enfrentou um "longo" período de doença. Durante esse período transmitiu sempre uma nota de serenidade, com um sentido de aparente boa disposição, e não perdeu a fortíssima esperança em dias melhores com uma pequena nota de humor. É esta a última recordação que guardo deste Grande Senhor que nos deixa com saudades.
Foi sempre assim, com este estado de espírito, que conheci este Arquiteto da Escola do Porto.
Em 1980 (concretamente em outubro de 1980, antes dessa data apenas se tratou de abrir a discussão de localização), quando iniciei o processo que levaria à construção do novo edifício dos Paços do Concelho de Matosinhos estava longe de saber que em consequência iria trabalhar, dialogar, sugerir, propor, contestar, com este arquiteto "elegante e sedutor" que reagia à minha irreverência, voluntarioso e até alguma inexperiência, com uma calma perturbadora, uma atenção notável e uma simplicidade mobilizadora.
Primeiro foi preparado o programa de concurso, constituiu-se o júri, abriu-se o concurso público, de âmbito internacional, para depois se decidir o vencedor. O júri reuniu-se várias vezes. Analisou, debateu, discutiu. Foi aliciante essa fase. Foi aí que convivi e partilhei, intensamente, com Siza Vieira, Arménio Losa, Agostinho Rica, entre outros Arquitetos e membros do júri.
Feita a votação tivemos um empate, entre a proposta de Alcino Soutinho e a der Pedro Ramalho.
Difícil sair desta "embrulhada". Como desempatar? O regulamento esclarecia que competia ao presidente da câmara, em caso de empate na votação, desempatar com o seu voto de qualidade.
Senti-me assustado, com uma enorme responsabilidade. Questionei-me se estaria preparado para, com a minha inexperiência e a irreverência de um jovem, presidente da Câmara, com menos de 30 anos de idade, assumir, sozinho, essa tarefa.
Com coragem, determinação e a certeza que tomaria a melhor decisão, avancei para a leitura, profunda e em pormenor, das duas proposta em confronto. Estudei, li, reli, perguntei, avaliei e depois de abrir novo debate para, cada grupo de votantes em cada um dos projetos, tentassem convencer-me que a solução que defendiam era a melhor.
Foi neste debate que se destacou Siza Vieira a defender com fortes argumentos a solução apresentada pelo Arq. Alcino Soutinho.
Depois da decisão o início do projeto. Os intensos contatos, reuniões e diálogos estabelecidos com o Arq. Alcino Soutinho. Foi nessa fase que o conheci. Conheci a sua personalidade, o seu carácter, as suas convicções, a sua notável simplicidade e capacidade de ouvir.
Durante os primeiros diálogos quando lhe disse que tinha o programa de concurso que balizaria o projeto, respondeu-me de forma pronta que o tinha lido com toda a naturalidade, mas tinha necessidade de ir muito mais longe que um documento técnico, com um conjunto de regras, de áreas necessárias e outros elementos. Precisava de sentir com profundidade o que se desejava para Matosinhos. Tinha que conhecer muito mais Matosinhos. A sua realidade sociológica. A sua história. Ao documento faltava alma.
Precisava também de conhecer melhor o pensamento do presidente da câmara, de saber o seu sentido e sentimento sobre o edifício, que se desejava, para os Paços do Concelho.
Um dia alertou-me para este pormenor "sabe presidente nós vamos ter a responsabilidade de preparar as bases para um edifício que será avaliado daqui a 20, 50, 75 anos". E mais adiante "temos de projetar hoje um edifício que daqui a 75 anos está a ser discutido e avaliado". Temos essa responsabilidade. Percebi o recado.
Respondi-lhe que desejava ter um edifício que refletisse o espírito do poder local democrático: aberto, cheio de luz, com salas sem portas e paredes, onde eleitos e eleitores se sentissem sempre muito próximos e com espaços geradores dos valores da democracia onde se fizesse o convite, permanentemente renovado, a respirar o verdadeiro sentido democrático do poder local de abril.
Deste diálogo resultou a obra que surpreendeu, agitou, provocou e obrigou as pessoas a "ler" aquele espaço e a aprender a gostar da "provocação" do maior "símbolo do poder local democrático conquistado com o 25 de abril que reflete, de forma notável e inteligente, a premissa de ser um edifício representativo dos cidadãos sem ser ostensivamente monumental ou retórico".

Foi uma relação intensa com "um homem encantador, dedicado e com imenso sentido de humor"
Uma experiência única que, tenho a certeza, não ser possível descrever a sua intensidade.
Este edifício tem uma abordagem singular capaz de integrar todas as instabilidades de circunstância de todos os estilos de exercício do poder que só poderia ser projetado por um grande senhor da arquitetura.
Assim resultou num projeto "provocador" que desafiou a "banalidade". Um classicismo pragmático que foi testando a passagem do tempo provando a sua sabedoria de fazer obra que resiste ao tempo e se mantém sempre atual.
Só um Arquiteto com a dimensão técnica, intelectual e humana, mas também encantador e dedicado, como Alcino Soutinho, o poderia projetar.
Sendo um arquiteto do Porto era um arquiteto do mundo e passou, desde essa altura, a ser, também, um arquiteto de Matosinhos.
Esta foi a forma mais sentida de prestar a minha humilde e sincera homenagem ao Arquiteto Soutinho. Saibamos seguir o seu exemplo.

Novembro de 2013

Narciso Miranda 

                                                                    (Publicado com autorização do Autor)

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