"ALCINO
SOUTINHO, O ARQUITETO DA LINGUAGEM EFUSIVA"
Com a
calma e simplicidade de sempre, como se tudo fosse natural, enfrentou um
"longo" período de doença.
Durante esse período transmitiu sempre uma nota de
serenidade, com um sentido de aparente boa disposição, e
não perdeu a fortíssima esperança em
dias melhores com uma pequena nota de humor. É esta a última recordação que
guardo deste Grande Senhor que nos deixa com saudades.
Foi
sempre assim, com este estado de espírito, que conheci este Arquiteto da
Escola do Porto.
Em 1980
(concretamente em outubro de 1980, antes dessa data apenas se tratou de abrir a
discussão de localização), quando iniciei o processo que
levaria à construção do novo edifício
dos Paços do Concelho de Matosinhos estava longe de saber que em
consequência iria trabalhar, dialogar, sugerir, propor, contestar,
com este arquiteto "elegante e sedutor" que reagia à
minha irreverência, voluntarioso e até
alguma inexperiência, com uma calma perturbadora, uma
atenção notável e uma simplicidade mobilizadora.
Primeiro
foi preparado o programa de concurso, constituiu-se o júri,
abriu-se o concurso público, de âmbito
internacional, para depois se decidir o vencedor. O júri reuniu-se várias vezes. Analisou, debateu, discutiu. Foi aliciante essa fase.
Foi aí que convivi e partilhei, intensamente, com Siza Vieira, Arménio
Losa, Agostinho Rica, entre outros Arquitetos e membros do júri.
Feita a
votação tivemos um empate, entre a proposta de Alcino Soutinho e
a der Pedro Ramalho.
Difícil
sair desta "embrulhada". Como desempatar? O regulamento esclarecia
que competia ao presidente da câmara, em caso de empate na votação,
desempatar com o seu voto de qualidade.
Senti-me
assustado, com uma enorme responsabilidade. Questionei-me se estaria preparado
para, com a minha inexperiência e a irreverência
de um jovem, presidente da Câmara, com menos de 30 anos de idade,
assumir, sozinho, essa tarefa.
Com
coragem, determinação e a certeza que tomaria a melhor
decisão, avancei para a leitura, profunda e em pormenor, das duas
proposta em confronto. Estudei, li, reli, perguntei, avaliei e depois de abrir
novo debate para, cada grupo de votantes em cada um dos projetos, tentassem
convencer-me que a solução que defendiam era a melhor.
Foi
neste debate que se destacou Siza Vieira a defender com fortes argumentos a
solução apresentada pelo Arq. Alcino Soutinho.
Depois
da decisão o início do projeto. Os intensos contatos,
reuniões e diálogos estabelecidos com o Arq. Alcino
Soutinho. Foi nessa fase que o conheci. Conheci a sua personalidade, o seu carácter,
as suas convicções, a sua notável
simplicidade e capacidade de ouvir.
Durante
os primeiros diálogos quando lhe disse que tinha o
programa de concurso que balizaria o projeto, respondeu-me de forma pronta que
o tinha lido com toda a naturalidade, mas tinha necessidade de ir muito mais
longe que um documento técnico, com um conjunto de regras, de áreas
necessárias e outros elementos. Precisava de sentir com
profundidade o que se desejava para Matosinhos. Tinha que conhecer muito mais
Matosinhos. A sua realidade sociológica. A sua história.
Ao documento faltava alma.
Precisava
também de conhecer melhor o pensamento do presidente da câmara,
de saber o seu sentido e sentimento sobre o edifício, que se desejava, para os Paços do Concelho.
Um dia
alertou-me para este pormenor "sabe presidente nós
vamos ter a responsabilidade de preparar as bases para um edifício
que será avaliado daqui a 20, 50, 75 anos". E mais adiante
"temos de projetar hoje um edifício que daqui a 75 anos está
a ser discutido e avaliado". Temos essa responsabilidade. Percebi o
recado.
Respondi-lhe
que desejava ter um edifício que refletisse o espírito
do poder local democrático: aberto, cheio de luz, com salas
sem portas e paredes, onde eleitos e eleitores se sentissem sempre muito próximos
e com espaços geradores dos valores da democracia onde se fizesse o
convite, permanentemente renovado, a respirar o verdadeiro sentido democrático
do poder local de abril.
Deste diálogo
resultou a obra que surpreendeu, agitou, provocou e obrigou as pessoas a
"ler" aquele espaço e a aprender a gostar da
"provocação" do maior "símbolo
do poder local democrático conquistado com o 25 de abril que
reflete, de forma notável e inteligente, a premissa de ser
um edifício representativo dos cidadãos sem ser ostensivamente monumental
ou retórico".
Foi uma
relação intensa com "um homem encantador, dedicado e com
imenso sentido de humor"
Uma
experiência única que, tenho a certeza, não
ser possível descrever a sua intensidade.
Este
edifício tem uma abordagem singular capaz de integrar todas as
instabilidades de circunstância de todos os estilos de exercício
do poder que só poderia ser projetado por um grande
senhor da arquitetura.
Assim
resultou num projeto "provocador" que desafiou a "banalidade".
Um classicismo pragmático que foi testando a passagem do
tempo provando a sua sabedoria de fazer obra que resiste ao tempo e se mantém
sempre atual.
Só
um Arquiteto com a dimensão técnica, intelectual e humana, mas também
encantador e dedicado, como Alcino Soutinho, o poderia projetar.
Sendo um
arquiteto do Porto era um arquiteto do mundo e passou, desde essa altura, a
ser, também, um arquiteto de Matosinhos.
Esta foi
a forma mais sentida de prestar a minha humilde e sincera homenagem ao
Arquiteto Soutinho. Saibamos seguir o seu exemplo.
Novembro de 2013
Narciso
Miranda
(Publicado com autorização do Autor)
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